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Pejotização: entre o direito do trabalho e a realidade do mercado

Em palestra na ACSP, o advogado Antônio Galvão Peres falou sobre a licitude da contratação de PJs por empresas, um tema controverso que tem causado insegurança jurídica por divergência de interpretação entre TST e STF

O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes sinalizou, nesta quarta-feira, 27/08, em um evento de empresários em Brasília, que a audiência pública que vai discutir os impactos sociais e econômicos da contratação de pessoas jurídicas como prestadoras de serviços - chamada popularmente de pejotização - deve ser realizada no próximo dia 6 de outubro.

Apoiador da tendência mundial de flexibilização de normas trabalhistas, de acordo com as novas realidades do mercado, Mendes sinalizou ainda que o tema, para lá de controverso, deve ser votado ainda neste ano pelo STF, para "alinhar o entendimento sobre a questão e criar jurisprudência."

Enquanto isso, o assunto continua a causar insegurança jurídica. A avaliação é do advogado e professor Antônio Galvão Peres, sócio do escritório Robortella e Peres Advogados e doutor em Direito do Trabalho pela USP, que diz que a questão vai além de fraudes pontuais: envolve insegurança jurídica gerada pela divergência de interpretação entre Justiça do Trabalho (TST) e STF, podendo ter efeitos significativos no financiamento da Previdência Social e até na reforma tributária em andamento.

Ele falou das perspectivas sobre o tema à luz da jurisprudência na reunião de agosto do Conselho de Orientação de Serviços (COS) da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).

Historicamente, a Justiça do Trabalho adotou uma postura protetiva ao interpretar a lei trabalhista para ampliar os direitos dos empregados - viés que muitas vezes ignora a literalidade da norma e cria custos e riscos imprevisíveis para empresas, disse.

"Já o STF, em decisões como a ADPF 324 (sobre o que é atividade-fim e atividade-meio na terceirização), e o Tema 725 (de terceirização de serviços para atividade-fim), passou a reconhecer a licitude da terceirização em qualquer atividade, criticando a rigidez da legislação trabalhista e admitindo novas formas de inserção do trabalhador no mercado."

O choque interpretativo levou a uma enxurrada de reclamações constitucionais ao STF contra decisões da Justiça do Trabalho que reconheciam vínculo de emprego em contratos de PJ, que cresceram 57% em 2024 e levaram Gilmar Mendes a suspender a tramitação dos processos envolvendo o tema até o julgamento definitivo.

Para Peres, o Supremo assumiu o protagonismo ao fixar entendimentos que relativizam a presunção de vínculo empregatício, privilegiando a autonomia da vontade - já que o modelo de trabalho pode ser escolha do contratado, se parecer mais vantajoso, além de promover diversidade contratual.

Ou tudo, ou nada

A pejotização é frequentemente associada à fraude trabalhista, mas Galvão Peres destacou que a realidade é mais complexa. Em alguns setores, como tecnologia e comunicação, muitos profissionais preferem atuar como PJ pela flexibilidade e pelo ganho líquido superior. "O desafio é separar o joio do trigo na tentativa de distinguir contratações legítimas de fraudulentas", disse.

O advogado alertou também que, diante da falta de alternativas legais intermediárias — como já existem em países europeus, com figuras como “trabalhador autônomo economicamente dependente” — o Brasil fica preso a uma lógica de 'ou tudo ou nada': ou o trabalhador é empregado CLT, ou é autônomo sem proteção. "Essa ausência de categorias intermediárias pressiona as empresas a adotarem a pejotização, com respaldo parcial do STF e resistência da Justiça do Trabalho."

A discussão ganha contornos ainda mais complexos diante da reforma tributária em andamento. Galvão Peres lembrou que, com a criação do IVA (CBS/IBS), empresas que contratam pessoas jurídicas poderão creditar os tributos pagos na cadeia - o que não ocorre com empregados celetistas. Ou seja, o mecanismo pode gerar incentivo fiscal à pejotização ao estimular empresas a substituírem vínculos empregatícios por contratos PJ, inclusive em posições de alta gestão e cargos de confiança.

Além disso, há ainda a preocupação sobre o financiamento da Previdência Social. "Se houver migração em massa para a pejotização, a base de arrecadação previdenciária tende a encolher, agravando o déficit do sistema", alertou o advogado.

'Vaca sagrada'

Em sua fala desta quarta-feira, o ministro Gilmar Mendes chamou a CLT de "vaca sagrada em que não se podia mexer", e a "flexibilização dos modelos de contrato faz parte de um processo histórico que não pode ser detido pela Justiça". Esse atraso também foi citado por Galvão Peres, na ACSP: em sua avaliação, a falta de reformas estruturais no Direito do Trabalho é a raiz do problema: enquanto outros países modernizaram suas legislações para acomodar formas híbridas de trabalho, o Brasil insiste em permanecer preso ao modelo “tudo ou nada”, reforçou. "O STF, ao validar a pejotização em alguns contextos, tenta dar uma resposta prática a essa realidade, mas o conflito com o TST acaba por gerar a insegurança jurídica."

Coordenador do COS da ACSP, o advogado Humberto Gouveia destacou o papel "fundamental e multifacetado" das associações comerciais e entidades de classe no debate sobre a pejotização e as relações de trabalho, que geram efeitos na estruturação de toda a economia do país. Também destacou a necessidade de uma atuação mais proativa e estratégica por parte delas.

"O problema não é apenas a validade do contrato de pessoa jurídica, mas a falta de alternativas no modelo atual, que as entidades deveriam ajudar a buscar", disse, propondo a criação de mecanismos de acompanhamento e controle no TST, por exemplo, para monitorar as decisões e súmulas que estão sendo criadas e que, na prática, têm força de lei.

Ele também acredita que a defesa técnica dos interesses dos empresários em nível nacional ajudaria a influenciar a percepção dos magistrados, evitando que "decisões sejam tomadas sem a devida compreensão das consequências práticas."

Gouveia também destacou as novas relações de trabalho em contexto global, lembrando que decisões internas têm impacto na concorrência mundial, e criticou a "passividade e a falta de pressão" do Congresso para resolver a origem do problema: a distribuição da proteção trabalhista de forma mais adequada às novas realidades. "O Brasil concorre com o resto do mundo, e a dificuldade na prestação de serviços e produção pode levar à exportação de possibilidades e investimentos para fora daqui."

Citando o Tema 1.389 de repercussão geral, Galvão Peres lembrou da indicação pelo STF de fixar em breve critérios sobre a licitude da contratação de PJs, a competência para julgar casos de fraude e o ônus da prova nesses processos. "A decisão poderá redefinir o equilíbrio entre proteção trabalhista, liberdade contratual e política tributária no país", concluiu.

*Com informações do Estadão Conteúdo